17.10.06

A avó Laurinda jura que jura que a tia A. chorou quando ainda estava na barriga dela. Que um dia andava com água pelos joelhos na monda do arroz, com uma barriga quase de oito meses e ouviu-se um choro, quase um miar, de bebé. Ali não havia bebés. Só a tia A. dentro da barriga da avó. As companheiras de jornada, conta a avó, durante dia e meio não a quiseram por perto. Afastavam-se da avó como o diabo da cruz. Depois o capataz lá as fez (à verdascada diga-se) ajudarem a avó Laurinda e o episódio faz de conta que não se passou que todas tinham medo das coisas do outro mundo e achavam que a tia A. era um bebé doutro mundo.
A tia A. casou-se cedo, como quase todas as mulheres da família do lado materno. Cedo é quinze anos. Casou, teve quatro filhas, ficou viúva do tio J. após 10 anos a cuidar dele por este ter ficado paraplégico numa noite de cervejas. Se foi acidente de trânsito? Não. Um matulão com mais de 130kg na brincadeira com ele (ele que era uma fraca figura) mandou-se para cima dele. Foi o suficiente. Parece mentira não é?. A tia casou depois mais duas vezes sem papel passado. A primeira com um contrabandista que andava por Angola, que lhe mandava para casa todos os meses um cheque chorudo e que ela gastava nos oito dias seguintes a comprar (como é que aquilo se chama? Eu nunca joguei.) cartões no bingo do Vitória. Raramente ganhava alguma coisa, mas quando ganhava ligava para a minha mãe eufórica "fiz bingo!" Claro que este casamento acabou assim que o contrabandista voltou. Já a tia A. estava grávida do único filho que tem. Depois a tia casou com um artista. É um artista dizia. Fazia bicicletas em miniatura com arames. Eu já o tinha visto várias vezes enquanto andava no secundário. Vagueava pelas ruas. Este casamento deve ter durado um ano talvez. Mas nesse tempo a tia não o deixou entrar em casa durante uns oito meses e nos outros dois não se falaram.
A tia A. oferece-nos sempre fios, anéis e pulseiras de ouro pelo natal. Diz ela que o ouro vale mais que o dinheiro. Ela sabe do que fala. Mais de metade do mês, todo o ouro que ela tem fica empenhado nos prestamistas. Depois quando recebe vai lá buscá-lo e anda neste ciclo vicioso há vários anos. Às vezes tem sorte e faz bingo. Nessas alturas, vai levantar o ouro à casa de penhores e visita ourivesarias. Compra sempre qualquer peça.
Não sei se a tia A. foi abençoada. Sei que a vida dela tem sido dificíl. Sei que a tia ainda assim tem um sorriso feliz e sempre que me vê abraça-se a mim de lágrimas nos olhos. Ainda que me tenha visto há dois dias atrás. Eu digo-lhe sempre em forma de brincadeira para lhe aliviar a alma "oh tia isso são saudades?" ao que ela me responde sempre que são.
Hoje aconteceu o mesmo. Mas hoje a tia respondeu-me que gosta do meu colo. Que o meu abraço dá-lhe colo. Afaguei-lhe o cabelo e ela perguntou-me "queres que a tia cante A lágrima?". E cantou. A tia canta o fado. Sempre cantou. E se este é o fado que me revolve a alma ninguém o canta como ela.