5.12.06

A avó Guilhermina chegou esta noite. Disse-me que me falta paciência de vida e que devia rir me mais como fazia antigamente. Contou me que a Sandra que mora por terras de Espanha está a espera de bebé. Já estou a imaginar a cara da Sandra quando me contar eufórica, que espera a visita da cegonha e eu com a cara mais surpreendida possível lhe pergunto "a serio?" e ela, ela percebe logo porque eu não sei fingir e vai perguntar-me com um misto de inveja e de alivio "porque é que a avó so te conta coisas a ti? Ela fala-te de lá?".
A avó falou imenso tempo, a propósito da gravidez da Sandra e das mulheres da família. De anca larga e perna grossa, boas parideiras como ela lhes chama e se calhar dai o hábito de todas falarem dos filhos como "as minhas crias". Sempre como se fosse na brincadeira, que há muito boa gente que fica chocada com tamanha comparação aos bichos, como se estas mães humanas não fossem como todas as mães. "Paridos e lambidos por mim" dizia a avó a respeito dos filhos, quando o que queria dizer era que sempre os tinha cuidado, sempre tinha estado lá. Falou do seu avô holandês de quem todos os netos e netas da minha geração herdaram os cabelos loiros e os olhos claros, falou da bisavó angolana que parece não deixou muitos traços na família a não ser na carapinha do avô Luís, seu filho e marido da avó Guilhermina. Carapinha essa que o mano herdou e quando deixa crescer um pouco o cabelo fica com uma carapinha loira que ele detesta e por isso há alguns anos que usa a cabeça rapada a gillette. Tal (falta de) cabelo, fez com que juntamente com o seu metro e oitenta e quatro fosse barrado à porta de algumas discotecas não fosse o rapaz ser skinhead. O mano!? Até da vontade de rir. Ele que é uma criatura dócil e pacifica.
Falou também do seu pai, um espanhol de sangue quente como todos os espanhois e "é dai que vem a sensualidade desta familia" diz-me ela e acho-lhe graça. "Sensualidade 'vó?", acho graça à palavra, dita pela sua boca porque só me lembro da avó Guilhermina ser velhota.
Contou-me que a tia Luisa continua uma esposa dedicada ao seu espanhol e que sossegou.
(O tio Zé e a tia Luísa tem uma história de amor à primeira palavra. Não ao primeiro olhar que ela estava de costas por detrás da banca das camisolas interiores, quando ele lhe perguntou "quanto é que isto custa?". Ela voltou-se com o seu cabelo negro pela cintura e quando os olhares se cruzaram aposto que houve faísca nos céus. A tia Luísa tinha pouco mais de 16 anos e andava de feira em feira com a mãe a vender camisolas interiores. O pai tinha sido morto por outro cigano, diz-se que por questões de honra. Mas isso não se sabe se é verdade.
Nessa noite o tio Zé e a tia Luísa mataram as horas nos carrinhos de choque que ficava mesmo por detrás da banca. Toda a noite caíram fichas nos carrinhos de choque e a feira de Santiago nunca viu tamanho encanto nos olhos de alguém, como viu no olhar daquela cigana. Quando a pista fechou o tio Zé soube que nunca mais se queria separar daquela mulher que lhe completava a alma (que as almas chegam todas a este mundo por metade) e levou-a para casa.
A avó Laurinda aceitou-a como sempre aceitou tudo o que a sua compreensão não conseguia alcançar. Como desígnio de Deus. Viveram juntos mais de 15 anos e desse casamento nasceram a Sandra e a Vera. Duas criaturas loiras de olhos azuis e traços ciganos. Nesses 15 anos o tio Zé apanhou vários sustos, sempre que chegava a casa depois do trabalho e as meninas estavam em casa da avó Laurinda. A tia desaparecia sempre por um ou dois dias e depois voltava chorosa e pedia perdão ao tio Zé. Que tinha sido a última vez, que não voltava a fazer. No seu amor infinito o tio Zé aceitava-a de volta. Ninguém sabia por onde andava mas calculávamos que ia à procura da mãe de quem nunca mais soubemos nada. Uma vez a tia Luísa foi-se embora e o tio Zé esperou e esperou. A tia ligou-lhe de Espanha. Que já não ia voltar que estava a trabalhar e tinha encontrado a mãe. Trabalhava numa boîte soube-se depois. Casou entretanto com o dono da boîte. Um espanhol ricaço que só tem olhos para a cigana. Fecharam a boîte e abriram há seis anos um restaurante de luxo perto de Barcelona. A Sandra e a Vera foram depois morar com a mãe e por lá fizeram as suas próprias vidas. A tia Luísa vem de vez em quando a Portugal a casa do tio Zé.
O espanhol e o tio dão-se muito bem, o que é uma coisa extraordinária, tanto foi o que o tio sofreu por amor a esta mulher. Traz-lhe sempre prendas e ainda o trata por "o meu Zé".)
Talvez por ouvir a tia Luísa enquanto crescia, apanhei o hábito de tratar por "meus" todos os que me são queridos. "A minha Paula", "o meu Tiago", "o meu Pedro", "o meu Fernando, "o meu Tomás". Uso estes termos sempre que falo sobre a Paula por exemplo e me perguntam "qual Paula?". Repondo simplesmente "a minha" e já sabem de quem se trata. Não é um sentimento de posse, é como se estas pessoas fossem uma extensão do meu corpo. São-me vitais. É sinal de amor apenas. Amores diferentes, mas todos Amor.
A avó Guilhermina disse-me que eu tinha que escrever. Escrever, escrever até que a dor no peito aliviasse. Disse-me para esperar, que estava escrito "e o que está escrito não se muda, seja nesta vida ou em outra."
Falou sobre mais gente, gente da família que eu já nem me lembro quem são. Falou de mortos e de vivos, e eu guardo os meus mortos todos comigo. Disse-me que continuasse a encher o peito de esperança ao P. (a avó sorri sempre quando fala do P., sorri e diz muitas vezes como se falasse apenas para si própria "tão perdido".). Acho que a avó gosta do P..Gosta gosta, que se não gostasse ela dizia-me logo, que a avó nesse aspecto é como eu, ou eu como ela, dizemos de chapa para maguar só de uma vez e ficar tudo esclarecido. Sempre é melhor que morrer aos bocadinhos.
Falou durante horas e eu acordei com a voz dela e uma grande dor de cabeça. O corpo cheio de dores das horas, como se tivesse passado a noite a vaguear por ai e não deitada na cama.