Descalço-me sempre. É verdade. Descalço-me sempre, que a altura provoca-me vertigens e ando com falta de equilíbrio. Os pés tocarem directamente no chão, dão-me a sensação de algum controlo. Se a parede da cozinha do primeiro esquerdo do número quatro fosse transparente, os vizinhos viam uma mulher descalça a estender a roupa, ainda que estivesse com traje de gala. Mas também quem está de roupa de cerimónia não se põe a estender roupa.
No outro dia, depois de pendurar o casaco verde seco (lembro-me perfeitamente que era esse o casaco, porque tinha o teu cheiro quando o enfiei na máquina de lavar e não me recordo se o passei pelo rosto antes de o pôr a dançar em água e detergente), sentei-me por baixo da janela a olhar a cozinha enorme e a sentir-me imensamente pequena. Um quase nada. O rádio em cima da mesa (oiço rádio todo o santo dia.), passou uma música que me trouxe o teu rosto à memória e quase que chorei. Quase. Eu gostava de ter chorado. Juro que gostava. Mas não caiu uma lágrima que fosse destes meus olhos afogados. Nem uma! Acho que é uma boa definição para a palavra dor. Deve ser. Todo o teu corpo a chorar e não sai uma lágrima. A alma a morrer-te no corpo e já não se tem a capacidade de a deixar fluir. Ir e voltar. Uma vez a avó disse à mãe, depois da mãe me ter dado uns tabefes já nem me lembro porquê "o choro dela era sentido. Via-se. Era magoado. Sem um som. Só as lágrimas a escorrerem."
Que raio de choro é este avó? Tu que sabes defenir o choro. Que choro é este que não tem lágrimas? É preciso haver lágrimas no choro?
Estava então descalça, sentada no chão por baixo da janela, que espreito só para olhar o céu que se tem enchido de trovoadas e de relâmpagos, quando o anjo ruivo apareceu e eu disfarcei a perda do olhar, ao olhar para um ponto qualquer do meu pé direito. O anjo disse "vamos brincar?" e sem esperar resposta virou costas e ainda ouvi ele dizer "vou buscar os cubos". Achou que estava à espera que chegasse para brincarmos. Só um anjo vê uma mulher sentada no chão, como se estivesse à espera de brincar.
E já não era só dor e lágrimas invisíveis. Agora era também a vontade de chorar aquele choro que se chora quando precisamos de colo e alguém chega e nos dá. No momento exacto. Como se chama esse choro? Gratidão?! O colo chegou-me em forma de convite para brincar e as lágrimas de gratidão (essas ainda sei chorar.) só não caíram para não assustar o anjo ruivo, que é demasiado inocente para entender os diferentes tipos de choro que existem. Pouco depois chegou também o anjo loiro e fiz de conta que me esqueci que a alma seca a todo o instante e me afasta da menina que vive aqui dentro e que me faz entender tão bem a linguagem dos anjos. A alma ao secar dói. Sabiam? É uma dor que vem do fundo do ser. De dentro das veias, dos ossos, de cada gota de sangue. Dói!
Horas depois já com os sapatos no sítio certo, a descer as escadas de um prédio que parece sempre vazio, dou por mim a falar com o santo. Em silêncio. Como as lágrimas, "olha por mim. Por favor olha por mim." Repito quase inconscientemente, até entrar no carro e o céu cinzento começar a chorar. Talvez chore por mim também. Por nós. Na casa grande que fica para trás, rodeada de árvores que são a única coisa que por ali se mede em altura, ficam os cubos no cesto das coisas que não se sabem onde guardar e o casaco verde seco a dançar ao vento e a espalhar o teu cheiro por todo o lado. Deve ser por isso que no sítio onde são consumidas seis horas diárias da minha vida, a alguns quilómetros de distância consigo sentir o sabor da tua pele.