Ao puxar o cortinado amarelo com estrelas bordadas, reparei neles. Eram dois. Um com uns quatro anos e as calças a cair-lhe e o outro com uns oito anos e só de calções. O mais velho mantinha-se em cima da laranjeira e abanava os ramos com força para que as laranjas caíssem, enquanto o mais novo corria apressado a apanhar as laranjas que quase rebentavam (algumas sim.) quando caiam no chão. Abri a janela e fiquei a vê-los. Quando limparam a laranjeira passaram ao único limoeiro existente. Uma fila toda certinha de laranjeiras está na frente do prédio. Do lado de lá da rua. A seguir as laranjeiras um espaço vazio que nunca vai ser preenchido com prédios porque pertence à junta de freguesia e é o novo espaço do mercado mensal. No fim da fila um limoeiro. Costuma estar pendurado em cada árvore um papel que diz "tem cura". Tem cura é uma frase engraçada. Podiam pôr que tem veneno que tem pesticida qualquer coisa. Puseram tem cura. Deve ser uma forma da junta de freguesia evitar que o limoeiro e as laranjeiras sejam constantemente alvo de miúdos e graúdos. É impossível aquelas árvores ter sempre pesticida. Nesse dia não estava o papel em nenhuma das árvores.
Estava o mais velho a tentar trepar o limoeiro que é bem mais alto que as laranjeiras, quando num dos prédios alguém fechou uma persiana e o mais pequeno que andava de cócoras a apanhar as laranjas olhou para cima. Olhou e viu-me. Eu sorri e ele disse meio a desculpar-se "andamos as laranjas". Eu respondi-lhe que não fazia mal, que eu não ia contar a ninguém. Acabei de fumar o cigarro e vi-os a carregarem um saco de plástico do lidl cheio de laranjas e com os poucos limões a que conseguiram chegar. À frente, no espaço onde uma vez por mês há o mercado e onde se vende botas a dez euros e fogareiros a dez euros também, estava a tenda montada à dois dias. As letras gigantes acendiam à noite. Num brilho vermelho já baço. "Circouniversal". Assim mesmo. Tudo pegado. Era o último dia naquela paragem de três dias. Eu que nem gosto de circo que me faz confusão os bichos serem domados, que me faz confusão cortarem as asas a todos os pássaros deste mundo, sejam eles tigres, pessoas ou pássaros mesmo, desejei que nessa noite o circo estivesse cheio. Ou as laranjas seriam provavelmente o almoço daquelas pessoas no dia seguinte.