7.9.07

É doloroso e ao mesmo tempo é bom, ler a agenda de 2004. Encontrei-a por acaso. Talvez a tivesse escondido. De mim própria. Sempre que escondo alguma coisa, escondo de tal maneira que nem eu volto a encontrar. Ou não encontro se precisar. Depois, um dia, não por um acaso como disse ali, nã! As coisas acontecem porque tem que acontecer, aparecem-nos frente às mãos como se sempre estivessem ali. No sítio mais que provável.
É bom. É, porque afinal o agora não é tão mau. Só por isso. Só por isso. Para servir de termo de comparação. Porque o mau actual, o mau presente é sempre pior que o anterior. Temos memória curta. Todos nós. A minha não só é curta como muitas vezes quase não existe. Esta memória que segundo o senhor doutor otorrino pode estar perturbada (e ele disse este perturbada quase a medo, não me queria melindrar certamente. e a mim deu-me vontade de rir.) também pela otite crónica.
Sei que acabarei por ficar surda como a avó. A audição da avó sempre foi péssima e com os anos ela ficou completamente surda. Mantinha grandes conversas na mesma. Mas só sobre os assuntos que queria. Falassem-lhe do tempo, dos preços, da família. Das flores. Do que fosse. Ela respondia com o assunto que muito bem entendesse. E depois ficava ali a dissertar sobre o assunto. A avó sempre foi uma mulher extraordinária.
Já quase não me dói. Ou talvez doa. Mas com o tempo (ou talvez já tenha nascido assim), aprendi a suportar perfeitamente as dores físicas. Só me queixo quando no limite. O meu limite é muito longe. Por isso às vezes penso que sou muito mais forte nas dores físicas que nas outras. As de alma. As que não se vêem. Não sou de lágrima fácil como o mano por exemplo. Quando se magoa, se fere, se corta. Caiem vinte palavrões por milésimo de segundo e parece que está a morrer. Eu não. Mas as dores de alma (e essas, dessas, tenho tantas! tantas que não consigo sarar e que se sobrepõem umas as outras, que certos dias há que parece que já não doem só porque já não há por onde doer), provocam-me olheiras e transformam-me no fantasma que vive no primeiro esquerdo e que faz companhia aos outros fantasmas que por lá habitam e que só eu vejo (provavelmente efeito do desequilíbrio de que falava o senhor doutor.)
Disse-me como se eu tivesse dez anos, que o meu ouvido era como os ouvidos dos esquimós. Não produzia cera. Ao não ter o alimento(!)o ouvido, o que o faz funcionar, adoece. Simples assim. "Por isso ponha uma gota de óleo para bebé no ouvido todas as noites" e disse-o como se à sua frente estivesse a menina de 9 anos que tinha ido lá pela primeira vez. Eu fiz que sim senhor com a cabeça e ele viu que eu nunca me lembro (nunca é um exagero.). O senhor doutor que já na minha infância deveria ter idade para ser meu avô, provavelmente não é mais que um fantasma como aqueles a quem às vezes digo enquanto abro as janelas "vá, vão-se embora por favor". Aqui o "por favor" não é só por hábito, mas também por medo que eles não se vão embora ou pior ainda, resolvam se tornar visíveis e oh karma dos karmas, não seriam uma certeza interior mas uma certeza dos olhos e depois como é que eu lhes contava que às vezes só me atrapalham a vida?
O António, o António (tenho tantas saudades dele e tenho o numero ali gravado no meu telemóvel e nunca lhe digo nada.) que durante meses me dizia de vez em quando no fim de cada mensagem escrita na altura em que eu recebia mais de cem SMS por semana "não te esqueças do óleo" de tal forma que se tornou uma piada entre nós. Mas o António já quase também não me diz nada. Cansou-se de SMS sem resposta ou respondidas com dias e dias de atraso. Sempre o mesmo "desculpa", sempre o mesmo "um beijinho" no fim de cada uma. E o António ficou mais triste depois da minha passagem pela sua vida. Tenho a certeza. Não fui a amiga que precisava. Já tinha passado por mim a tempestade de tristeza que me assolou a alma (e eu só dei por ela muito tempo depois) e me tirou a capacidade de deixar feliz os que se aproximavam mais do que o necessário. Mas no último SMS fiquei tão feliz quando me disse que namorava com uma brasileira e desejei do fundo do coração que seja feliz porque gosto muito dele e porque sempre se preocupou comigo.
O senhor doutor (fantasma de certeza), veio à janela enquanto eu ligava o motor do Astra e acenou. Pensei de mim para mim que com a idade dele de certezinha que é mais surdo que o meu ouvido esquerdo. Que os dois ouvidos silenciosos da avó. E que talvez ele seja como todos os velhinhos, um sábio e no diagnóstico dele esteja a justificação para todas as minhas dores de alma, os meus fantasmas, o terrível dois mil e quatro. Talvez tudo se resuma a essa otite crónica.