27.4.08



Um dia pensarei que passei por ti como passam os pássaros
por este campo que há-de tornar-se seco, no inverno; e que a
primavera que vivemos não há-de voltar, ao contrário dessa
que todos os anos sucede ao inverno, trazendo consigo esses
pássaros de que me lembro ao pensar que estou sem ti, agora
que todas as viagens chegaram ao fim, e uma pausa se prolonga
até se tornar definitiva. Mas não é por pensar isso que me sinto
longe de ti: o que talvez me faça sofrer, como se o sofrimento
não fosse uma parte do amor, e se substitua a ele, quando o
tempo impõe as suas regras, e nos lembra que dependemos
de pequenas coisas para que tudo mude, de um dia para o outro,
tornando-nos outros do que fomos, embora continuemos a
sentir o que sempre sentimos. Então, dirás,
alguma coisa valeu a pena? E eu respondo que
a migração dos pássaros é um sintoma de que os hábitos
não mudam quando queremos; e a vontade dos que
querem ficar leva-os à morte, como se entre morrer e amar
houvesse um elo que não sabemos de onde vem, mas se manifesta
na melancolia de um bater de asas, sob os ramos da árvore,
quando o céu de chuva impede o voo para cima dos seus
ramos. Mesmo que peguemos nessa ave, de pouco servirá: o
seu destino foi escolhido por ela, e quando isso acontece nada
podemos fazer. Debate-se, procurando escapar aos dedos
que a prendem; e esse gesto leva-a para onde não lhe chegamos,
a não ser com o olhar, sabendo que no dia seguinte o ramo
irá ficar vazio. Assim, voltei ao café onde tantas vezes te
esperei: e não havia ninguém na mesa, como se a maldição
tivesse tomado conta do lugar. «É do inverno», disse
o patrão, «ninguém sai de casa com este tempo.» Não lhe
dei outras razões. O que eu sei, levaste-o contigo, neste
inverno em que nem os pássaros querem ficar.

Nuno Júdice in O Estado dos Campos

4 comentários:

Armanda Barbosa disse...

"Não nos ensinam a vencer a saudade, não nos dão o milagre de não sentir a dor da ausência de alguém"

Mas deviam..

(isto é o comment ao texto d dia 30, n apareceu la o link p comentar :S)

Munita disse...

"Inventa a eternidade na simples comoção de olhar uma estrela. Basta que a olhes pela primeira vez, depois de a teres olhado inúmeras vezes. E, então, não precisarás de nenhum deus que te ponha a mão no ombro e diga estou aqui. Uma estrela espera-te desde toda a eternidade. Procura-a. E vê se a não perdes durante a vida inteira. A tua estrela pode não estar no céu. Põe-na lá."

Virgílio Ferreira in pensar

Lyra disse...

(...)
E vê se a não perdes durante a vida inteira
(...)



obrigada
:)

Munita disse...

De nada... :)