Bastava-me apenas ser.
Canso-me muitas vezes de mergulhar nos pântanos escuros que me habitam. Bastava-me existir. Se não fechasse os olhos tantas vezes quando decido que só volto a viver no dia seguinte, talvez não encontrasse estes fantasmas todos. Bastava-me ter uma alma. Uma apenas.
Existem rios. Quando ainda estou naquele patamar entre o semi adormecida e o sono profundo. Rios transparentes. Tudo é vida à sua volta. As pessoas são sempre pequeninas. Crianças. Ouço-lhes o riso. Não há um único adulto naquele quadro de tranquilidade, igual às imagens que coloriam uma bíblia ilustrada para crianças que os meus pais me deram andava eu pelos 8 anos. Um dia vou olhar para trás e transformo-me também eu numa estátua de sal. (Quantas lágrimas serão precisas para ter o sal suficiente para temperar a vida? )
Tenho uma memória má. Não me recordo de grandes pedaços da minha vida. De conversas. Ficam-me apenas sabores. Cheiros. Tenho um olfacto apuradíssimo e uma audição complicada de definir. Não que oiça mal. Oiço, mas não entendo, não percebo. Deve ser um desequilíbrio dos sentidos. Uns roubaram espaço aos outros.
Numa conversa sou capaz de perder três ou quatro frases, mas consigo ouvir uma melga a vários metros de distância. Ou o comboio, quando pára no apeadeiro que fica a 7 km da minha casa.
Quando era pequena sonhava que ia no comboio, confortável, numa viagem que me levava não sei para onde. Se calhar para lado nenhum.
Apetece-me às vezes, nas noites em que os fantasmas que me habitam cortam tudo ao seu redor numa perfeição quase cirúrgica sem deitar pinga de sangue, apanhar o comboio de bancos forrados a napa cor de café com leite e sair no último apeadeiro. Pintar o cabelo com as cores do arco-íris e deixar que todas as almas que vivem em mim se manifestem ao mesmo tempo sem fazer pausas em mim, num festival de saltimbancos malucos. Talvez me transforma-se na estátua de sal que se dissolvia logo de seguida com as primeiras chuvas do inverno que me veste.