8.6.06

Nasci em 74. Esperei que a primavera chegasse e no dia 23 nasci. Quase um mês antes do previsto, se calhar porque queria ter os olhos já abertos ao mundo quando chegasse a revolução dos cravos.
O avô Luís, só me conheceu quase duas semanas depois. Ele bem queria estar presente no momento em que a minha mãe chegasse a casa com a neta nos braços. Mas um dia apareceram-lhe em casa uns senhores que diziam ter umas coisas para lhe perguntar. Ninguém sabia onde ele estava. Só sabiam que era coisa da PIDE. A maior preocupação do avô Luís, tinha sido sempre ter comer em casa. Ainda se lembrava de quando comprava 5 pães de quilo à segunda-feira e esses cinco pães tinham que dar até à segunda-feira seguinte. E eram 6 pessoas lá em casa. Não admira pois que fosse homem calado, recatado, com preocupações maiores que com as coisas da politica. Diziam que era comunista. Passou a ser. Depois da visita dos senhores vestidos de fato e gravata.
A casa dos meus pais era paredes meias com a casa dos avós e lembro-me de estar sentada ao lado do avô, no poial que o pai tinha feito uns dias antes do tremor de terra. No dia em que a terra tremeu o poial ficou todo rachado. Ainda hoje está rachado. Memória do tremor de terra diz o meu pai. Sentava-me ao lado dele, depois de almoço e ouvia-mos os discos pedidos. O rádio pequenino a pilha sempre na mão do avô. A avó Guilhermina puxava de uma cadeira e sentava-se ao pé da porta. Ao pé de nós. Lenço preto na cabeça para se proteger do sol ia ralhando comigo, que pusesse um chapéu que depois ficava com Sol. A avó benzia do Sol. Apareciam lá em casa pessoas de todos os lados. Tinham em comum o facto de andarem com dores de cabeça há dias seguidos. Dores que pioravam todos os dias. Já não passavam com medicamentos. Depois sabe-se lá como iam lá parar. A avó punha-lhes um copo de água em cima da cabeça e ia dizendo umas rezas baixinhas, tão baixinho que ninguém conseguia entender o que dizia. A água começava a ferver até desaparecer por completo do copo.
A avó ajeitava o lenço e dizia para o avô levantar o som do rádio sempre que ouvia a voz da Amália ou do Fernando Farinha.
E eu cresci a ouvir os lamentos do fado.
De manhã a avó vinha para a rua, desatava a trança que lhe chegava à cintura, desenrolava-a e o cabelo caia-lhe abundante. Penteava aqueles cabelos de prata e eu admirava-lhe o cabelo já que todas as avós que eu conhecia tinham pouco cabelo, fraco. Foi a ela que fui "buscar" o cabelo diz-me a minha mãe. Abundante, comprido, com esta cor indefinida que era a mesma do cabelo da minha avó quando esta era menina-moça. Naquela altura apaixonei-me por aquela cor de prata e dizia muitas vezes que queria ter cabelos brancos. Hoje com 32 anos não tenho um único fio branco. Já era tempo não? Nada. Nem um fio.
A avó depois de escovar, voltava a fazer a trança e a tapar o cabelo com o lenço preto. Sempre de preto da cabeça aos pés. Há mais de 40 anos. Quando a filha mais nova morreu vestiu-se de preto e nunca mais largou a cor saudade. As vizinhas diziam-lhe "oh ti Guilhermina porque é que não veste uma camisola azul escura, porque não alivia o luto?" A avó respondia-lhes sempre " Quando a minha Maria Custódia voltar a terra".
Quando o 25 de Abril chegou já o avô estava em casa. Do que se passou nos dias em que esteve em parte ausente nunca falava. De vez em quando, a meio dos seus pensamentos, sentado sozinho lá no poial sai-lhe um "aqueles cabrões". O avô morreu 17 anos depois e a avó nunca mais ligou o rádio.